Fonte: ZH Digital dia 15/05/1998
César Passarinho, o cantor símbolo da Califórnia da Canção, morreu ontem, em Caxias do Sul, vítima de câncer
MARCELO MACHADO
Especial/ZH
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Uma boina e
um colete branco. Em cima do ombro, um pala. Nos pés, uma alpargata ou um par
de botas combinando com a cor do lenço. César Passarinho, 49 anos, era o músico
da pilcha. O intérprete de Guri e Negro da Gaita. O cantor símbolo da Califórnia.
Um homem quieto. De poucas palavras. Um muxoxo e não precisava mais que isso.
No palco, ele se soltava. As mãos voavam como a reger uma sinfonia de um único
cantor. César Passarinho morreu às 12h48min de ontem, no Hospital Saúde, em
Caxias do Sul. O cantor estava internado havia 43 dias tratando de um câncer no
pulmão direito.
O apelido
Passarinho é uma referência ao pai, que tinha a alcunha de gurrião (pardal). O
filho do pássaro se transformou em passarinho. O músico das milongas começou a
carreira musical tocando nos bailes de Uruguaiana. O Grêmio Tiradentes, o Clube
Caixeral e o Clube Comercial eram animados por conjuntos que tocavam música
popular brasileira. César Passarinho se destacou, entre outros, no Conjunto
Hi-Fi. O mais inusitado de tudo era o seu instrumento. Além de cantor,
Passarinho era baterista. Foi com a 3ª Califórnia, em 1973, que ele descobriu a
música regionalista com a apresentação da
composição Último Grito. César Passarinho sempre foi um homem da noite. Um
boêmio. Era comum encontrá-lo no Corinthians ou no Bar do Cid – lugares em que
ele se reunia com os amigos, em Uruguaiana. Durante a década de 70, a bebida
afastou-o diversas vezes dos palcos.
Califórnia e
César Passarinho são sinônimos. O festival e o músico começaram juntos. O
cantor uruguaianense acabou se transformando na marca registrada do festival de
música nativista. Com quatro Calhandras de Ouro – troféu máximo da Califórnia –
e a conquista de sete prêmios de melhor intérprete, Passarinho foi o mais
destacado dos vencedores do festival. Em 1983, com Guri, o pássaro-cantor voou
mais alto do que se poderia imaginar. A canção subiu ao palco da Califórnia com
nomes como Neto Fagundes e Renato Borghetti. César Passarinho ensaiou a música
um dia antes da interpretação. Foi ali que veio a redenção. Naquele ano, o
músico se afastou das bebidas e passou a se
dedicar à música.
César
Passarinho será lembrado como um artista que gostava de cantar o romantismo e
as coisas do campo. Com a sua morte, a geração Califórnia ficou órfã. O Rio
Grande gaúcho está de luto. A calhandra, pássaro de canto doce, que só canta
quando está livre, nunca mais será entregue a um César que voava até no nome.
Guri (João Machado da Silva e Júlio Machado da Silva Filho) se encerra com os
versos “E se Deus não achar muito / Tanta coisa que pedi / Não deixe que eu me
separe / Deste rancho onde nasci / Nem me desperte tão cedo / Do meu sonho de
guri / E de lambuja permita / Que eu nunca saia daqui”. Passarinho foi sempre
assim. Um guri que cantava. Um músico que continuará representando com sua voz
o canto e a tradição do Rio Grande do Sul.
Que Deus te receba, irmão
ANTONIO AUGUSTO FAGUNDES
Não é fácil
escrever nesta hora de dor. Não é fácil, porque não é possível ler o que se
escreve, com os olhos turvos de lágrimas. César Passarinho partiu. Alçou vôo
para encontrar o céu que sempre teve dentro do seu próprio coração.
“O anu é um pássaro preto,
passarinho de verão.
Quando canta à meia-noite
dá uma dor no coração...”
passarinho de verão.
Quando canta à meia-noite
dá uma dor no coração...”
Era filho de
um pai boêmio, artista popular e amante do trago. O pai é que era o Passarinho.
Ele, puxador de samba carnavalesco, herdou o apelido paterno. E já como César
Passarinho é que ele foi atraído para o gauchismo, pela Califórnia, festival
que ele encarnou como ninguém: como esquecer Negro da Gaita, Último Grito e,
sobretudo, Guri?
César
Passarinho era o formal desmentido de racismo em nossos festivais, um campeão,
um vencedor. Quantos chegou a vencer como melhor intérprete? Nem ele mesmo
saberia. Mas era uma alma sofrida: amores contrariados, a luta contra a
tentação do trago, tudo ele venceu ajudado pelo aplauso do povo do Rio Grande.
E ele sempre estará em nosso coração, de pé, com sua bombacha branca, seu lenço
maragato, sua voz privilegiada, sua emoção cantando:
“Quando o negro abre essa gaita,
Abre o livro da sua vida...”.
Abre o livro da sua vida...”.
Que Deus te
receba, irmão gaúcho e te dê um lugar especial no coro dos anjos mais afinados.
E tu hás de entreverar alguma canção gauchesca no meio daqueles hinos e
cantochões. E nós continuaremos, até o reencontro definitivo por aí, a te
recordar com saudade:
“O anu é um pássaro preto,
passarinho de verão.
Quando canta à meia-noite
dá uma dor no coração...”.
passarinho de verão.
Quando canta à meia-noite
dá uma dor no coração...”.
A voz dos amigos
“Ele era silencioso. Hoje, não existem mais gênios. O César
Passarinho, nos anos 80, era um gênio, uma figura encantada. As poucas
conversas que tive com ele foram quase lições de vida: dois ou três minutos
proveitosos. Não se escreve a música do canto gaúcho sem falar em César
Passarinho.”
Luiz Carlos Borges, músico
“A morte do Passarinho marca a passagem de uma etapa da
Califórnia da Canção. Seu carisma era tal que os jurados da Califórnia
decidiram torná-lo hors concours. Tive a honra de vencer uma linha da
Califórnia de 1981 com uma música cantada por ele (Canto Livre, parceria de
Duarte, João Chagas de Leite, Armando Vasques e Valdir Santana). Toda a
história das Califórnias já valeria só pelo aparecimento de nomes como o dele.”
Colmar Duarte, ex-presidente da Califórnia da Canção Nativa
“Produzi o primeiro disco de Passarinho, no início dos anos
80 pela Polygram. Mas foi engraçado como o conheci: me disseram que havia um
grande cantor em Uruguaiana, que era sambista e que se chamava Passarinho. Só
que, então, o vi cantando e o contratei na mesma hora. Ele era a voz da
Califórnia.
Assim como a calhandra, era um passarinho de canto doce, que
só canta em liberdade.”
Airton dos Anjos, produtor de discos
“Foi meu amigo de infância. Sempre personificou uma estrela
que estava mais próxima de mim. Era um grande boêmio, a gente convivia nos
bares.”
João de Almeida Neto, músico
“Quando César Passarinho surgiu, eu estava morando em São
Paulo. Mas é indiscutível que ele foi figura fundamental na fase de projeção
dos festivais de música tradicionalista. Participo dos festivais mais como
ouvinte, mas o carisma de Passarinho, seu sucesso, estimulou outras cidades a
também organizarem festivais.”
Barbosa Lessa, tradicionalista
“Fico muito triste. Minha ligação com ele não era só
artística, eu era amigo do Passarinho. Nas primeiras Califórnias, eu viajava de
Alegrete para Uruguaiana só para vê-lo cantar. Em 1983, eu e Borghettinho
tivemos a honra de acompanhá-lo quando ele venceu a Califórnia com Guri.
Cheguei a ser percussionista da banda dele. Morreu um dos símbolos da
Califórnia e da música regional, e um ídolo meu.”
Neto Fagundes, cantor
“Ele foi a pessoa que começou o nativismo. Não tem um
substituto para o César Passarinho. Ele quebrou muitas barreiras em função da
cor, pela voz e pela sua música.”
Ivete Trojan, diretora da Gravadora Acit
“Tenho uma lembrança muito viva do César Passarinho. Eu
estava a passeio em Uruguaiana e assisti à 6ª Califórnia. Lá pelas tantas,
anunciaram o cantor, eu ouvi a voz e ela me causou uma forte emoção. Quando
terminou, fui lá no palco. Eu não acreditava no que estava ouvindo. O César
Passarinho tinha uma maneira muito pessoal de cantar.
Era um cantor único.”
Glênio Reis, apresentador da Rádio Gaúcha
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