quinta-feira, 29 de outubro de 2009

O Funeral! Um conto de Sérgio Carvalho Pereira


O Funeral
           
Quem poderia dizer no inicio daquela noite que, às quatro da madrugada, ali haveria um funeral.

Festa grande era aquela. Uma feira de primavera. Gente, mas muita gente! De campanha e de cidade. E os animais? Esses, um luxo, tudo pelechado pelo trato. Como se não houvesse feito tanto frio esse ano.

A noite do sábado de outubro carregava consigo os últimos acordes do inverno que, dessa feita, sentava para não ir embora. Soprava ainda uma aragem fresca vinda dos castelhanos. Quem conhece sabe o que é esta fronteira sul, limite brasileiro com a Republica Oriental del  Uruguay.

Houve provas de campo, comes e bebes, compras e vendas, de quinquilharias e de coisas importantes, e havia, sobretudo para mim, música nos vários palcos e galpões espalhados pelo grande terreno.

Por motivos ligados aos espetáculos, vários tocadores, cantores, compositores, estiveram lá naquela noite. Reencontraram-se amigos de cantoria, de viagens, de gauchadas.

Findas as apresentações, anunciadas debaixo de uma lona grande, o povo se esparramou pelo pátio à busca de um munício para o corpo e algum acalanto para a alma.

Como se fora uma coincidência, alguns amigos da música, por vários caminhos acabaram por se juntar. O lugar, um comércio improvisado que oferecia jantares mas, sobretudo, bebidas e um tapado para o serenal. Sem que se tenha acordado, viram-se juntos ao redor de uma mesa sete amigos, de longa data ou do momento, não importava, eram hermanos, reconheciam-se “por el lejano mirar”.

Determinado momento o tema das conversas pendeu para as melodias, as harmonias, as canções, os poemas ..., e não demorou para que um deles, pro caso foi o guitarrero do sete cordas, tirasse seu instrumento do estuche e mostrasse aos demais um arranjo magnífico de milonga. Aquilo acendeu comentários, comparações, euforia... De imediato veio uma segunda execução, agora do gaiteiro da três hileras cor de barro. E ele tocou rindo, mirando pra baixo ou, quem sabe, para o copo de cerveja sobre um mantel quadriculado que lhe alegrava a frente. Estaria ali toda noite, ao lado e a esquerda do guitarreiro.

Na quina oposta da mesa, não querendo ficar na cabeceira e sim ladeando a primeira gaita, uma segunda botoneira pegou a florear e logo se perdeu em uns chamamés costeiros e umas guaranhas  missioneiras. O músico sorria ao escutar versos do payador da sua terra, recitados pelos amigos para ilustrar seus causos.

No outro lado, sem o seu instrumento, um segundo guitarreiro cantarolava e pedia temas aos amigos que o atendiam com entusiasmo. Parecia que, por estar sem a guitarra, “tocava nas cordas de seu coração”.

Ao lado, seguindo a volta, estava eu. Um fazedor de versos. Do princípio senti que aquela noite não seria nada comum. Havia no ar uns acordes antigos, uns timbres terrunhos, vi que os músicos, quando abriam os olhos, tinham neles um brilho de Estrela Dalva, de cruzar a noite alumiando.

Seguindo ao redor da mesa, sempre à esquerda, sentava uma professora de literatura. Observava com atenção e envolvimento as execuções e considerava sobre os temas de maneira não acadêmica, mas sim com a paixão telúrica dos artistas da terra.

Fechando a volta , entre a professora e o violão de sete cordas, a cantante, uma Uruguaya com voz de vento de fronteira, interpretava  os temas com uma entrega  tão grande que parecia estar cantando ao palco do teatro Solís.
 
Assim a noite, de rédeas soltas, ganhou a madrugada embalada pelas canções mais sonoras que tenho ouvido nos últimos tempos. Foi um espetáculo para nós mesmos! Foi um recital para “uno”!

Quem poderia adivinhar que às quatro horas daquela mesma madrugada se viveria alí, naquele lugar, um funeral...?

 As garrafas foram se amontoando e os temas cada vez mais tocavam fundo aos músicos que, num envolvimento total com o seu mundo de cumplicidade sonora mergulhavam numa abstração tão grande que, praticamente, não percebiam nada do movimento que havia ao seu redor.

Mal se acabava um tema e outro já principiava. Precedido apenas pela referência e um saludo de reconhecimento ao seu autor, esses sim, muito especiais, escolhidos pela admiração coletiva.

            Às vezes um paroquiano pedia uma música. Ninguém ficou sem ser atendido, ainda que, na maioria das casos, se tocasse outra peça a despeito do pedido, pois aquilo não tinha um sentido racional seguindo sim um repertório de sentimentos e lembranças instantâneas.
           
Esta noite, ao redor da mesa, se deu vivas a Astor Piazola e seu talho definitivo ao ritmo portenho. As botoneiras e seus dois executores incorporaram o espírito dos bandoneos bonairenses e o tango do grande maestro soou como uma peça tão sureña e tão popular quanto a cifra e a chamarra.

Se ergueram copas para saludar a “La Negra”. A cantante se incorporou, cerrou os olhos e, com voz de cigarra anunciadora de vida, cantou a peça de Maria Elena Walsh com a qual Mercedes Sosa  pregou a imortalidade daquele que luta e que canta. Foi um momento bárbaro!

Mas sabe... não havia tristeza. Havia sim um estado de emoção e de companheirismo comum aos que caminham.
Caminhos... os caminhos de Santiago Chalar também foram lembrados. Quem destes sete não carrega um pouco do pó dos caminitos de tierra colorada acomodado nas dobras do lenço ou na gola do poncho pátria?

Caminhos... cantou-se o passo do poeta maior, Don Osíris, pelos caminhos dos quileiros na  fronteira nordeste de seu paisito tão pequeno em terras e tão grande em poesia.

Caminhos... aqueles mesmos, os escondidos, por donde cruzou “Maria Contrabando” se esgueirando dos milicos e acalmando os quero-queros para não perder a carga das carretas pesadas de alguma esperança. Uma vida inteira de rudezas para os que costuram um lado com o outro desta fronteira pela linha frágil riscada entre as coxilhas tapadas de maria mol.

E foi ao vocal entusiasmado daqueles sete hermanos, que ouviram todos os que podiam ouvir naquela noite, este refrão: “Y se quedó con sus amigos chamameceros...” Assim, através dos versos de Mario Bofill chegou-se a alegria de poder recordar os companheiros de jornada que não estavam ali. E foram muitos os parceiros de cantoria lembrados. Muitos e bem montados.

Uma gaita puxou o solo de um chamamé, uma composição do  Mestre. Ele, que aquela hora deveria estar em sua morada, a las afueras de Santana do Livramento. O chamamé tão bem tocado e tão bem soou naquela noite de fronteira que, ao final, fez-se um silêncio profundo e, dentro dele, apenas se escutou um verso de homenagem e admiração:

“Três hileras é muito pouco
Pros dedos desse gaiteiro.
Canta a voz do musiqueiro
E no peito ele agüenta o soco.
Temporal em cada sopro
Estio, sensibilidade,
Um chamamé de verdade
E a arte não passa fome.
Quem não ouviu Leonel Gomes
Vê o mundo pela metade.”
           
E vieram um por um nossos amigos.

Cantou-se o “Cantor dos Caminhos” que, nesta hora, na sua trajetória andeja, estaria certamente em algum povo distante, reverenciando ao “Cantador de Campanha”. Brindou-se à sua história, à sua importância para todos. E deu-se graças por ele.

Cantou-se ao Poeta dos Olhos D’água que, para nós, é e sempre será o contramestre segurando a linha reta de um alambrado construído de sonhos e sofrimentos dos que escolheram o rumo da cantoria, nesta bárbara poesia que é andar.

Cantou-se o “Poeta Exilado”, aquele que na cidade, ponto final das grandes tropas, um dia chegou também, e ali iniciou a diáspora de seu mundo de campo e o princípio de uma digna obra de versos, biografia e referência para tantos iguais.

Cantou-se o “Cantor dos Cavalos”, o que tem o sangue de seus pingos e a voz antiga dos que chamaram tropa na direção de São Domingos.

Cantou-se por fim o “Poeta das Pulperias”. Aquele que com rara profundidade fala dos tipos humanos que vivem sobre a linha da uma fronteira seca que é sua casa e sua riqueza poética.

Para cada um deles houve versos e, ao final dos recitados, todos deram vivas aos parceiros ausentes. Para cada um pediu-se vida longa, mesmo que ninguém tenha dito isso.
           
            Que noite!

Parecia que nada poderia cambiar seu passo. Ninguém, absolutamente ninguém,  sonharia imaginar seu epílogo... o funeral.

Era madrugada grande quando o tocador da guitarra grave, executou com paixão a sua obra. Seguro estou que, naquele momento, lhe povoavam a mente retratos dos rincões de sua querência, a orillas do Camaquã. Os dedos agora desgovernados contaram a história linda de um Coração de Província.

A professora, a minha esquerda, submersa naquela atmosfera, pensava certamente em seus alunos. Como gostaria que eles de alguma forma vivessem aquilo. E, por certo, lembrava das classes onde dividia o tempo entre leituras de Simões Lopes Neto e Jorge Luis Borges com pausas de silêncio para escutar os murmúrios do velho Rio Jaguarão. 

Os gaiteiros, em perguntas e respostas intermináveis, teciam um tal dialeto com as cordeonas que, por intrincado que pudesse parecer, quedava claro na sua expressão mais profunda que aquilo era a própria linguagem do Sul.

A Cantante pediu a guitarra e mostrou a mágica crioula de La Galponera. O silêncio foi tão grande para escutá-la que só naquele momento percebi que não havia, pelas calçadas e pelas carpas, mais ninguém.

Já era domingo, beirava três e meia da madrugada.

O que sucedeu naquela noite a partir deste momento marcaria a minha vida e a dos meus seis amigos de maneira definitiva. Não há como esquecer a seqüência de fatos que em meia hora levou-nos ao funeral. Eu os vou relatar aqui.

Se tocava uma vaneira de baile de rancho, pura, sensilla e mui linda, quando o responsável pelo estabelecimento dirigindo-se à mesa e, sem dizer a ninguém, disse a todos esta frase: – Esta será a ultima música, o chefe da segurança pede para que se faça silêncio.

Os músicos nem se olharam, acredito que não ouviram ou, então, não puseram tenência naquilo. Quando encerrou-se a vaneira quem falou ao homem foi o gaiteiro dos olhos pequenos, que disse: - Mais uma cerveja.

Quando voltou com a bebida eu recitava uns versos, então não pode dizer nada pois não cometeria a deseducação de sobrepor-se a minha voz. Tentou falar ao final do recitado mas os saludos foram tão efusivos que não houve espaço.

E tocou-se mais quatro marcas. Um valseado, uma zamba e dois chamamés. Ao final, ouviu-se a voz do garçom - ou dono, nunca se soube - falar por segunda vez, agora em tom mais grave e com certo temor no dizer:

- O chefe da segurança está aí fora e disse para pararem.

De novo, aquilo não fez sentido, alguns olharam para os olhos do homem, mas, eu sei , seus pensamentos não estavam ali, não percebiam o que passava.

O guitarrero bordoneou forte e este chamado foi como fogo na macega seca. Reconhecidos os primeiros acordes romperam as cordeonas e logo as vozes num rasguido-doble que soou ainda mais alto pela euforia que produziu a surpresa do tema.

Nesse instante eu, que estava de frente para o pátio, vi pela vidraça embaçada o vulto de um homem grande aproximando-se da porta. Ladeavam-no cinco sombras menores, porque vinham mais atrás.

Creio que o guitarreiro a meu lado, o que estava sem seu instrumento, também os viu. Os demais não puseram reparo.

Quando acabou-se o rasguido, os homens atropelaram direito a porta.

Naquele lapso de tempo, exato e justo grupo de segundos que demorou a guarda para chegar, da rua aonde estava até a porta fechada, eu me apercebi do que passava.

Antes que o chefe  pusesse a mão sobre a maçaneta  um dos amigos, me parece que o guitarreiro a minha direita, pediu em voz baixa: – Sol Maior.

Ao soar o acorde, todos rompemos em voz sussurrada:
                                  
Repousa o corpo tranqüilo
No funeral da coxilha...
Terra bordada em flechilha
É o catre de quem retorna
           
A sétima corda batia um tão suave e baixo bordão num compasso contínuo que, junto às sete vozes murmuradas, aquilo tomou o ar de um réquiem para uma respeitável celebração litúrgica.

Os homens, após o ruído forte do metal da porta arrastada no piso de pedra, entraram no recinto.

Os músicos, todos, de cabeça baixa, graves, sérios, entoavam entre lábios a canção:

Morreu num final de tarde
Entre pasto rebrotado
Quando uma ponta de gado
Buscava a paz de algum capão...

Só eu levantei os olhos, pensei mesmo que o primeiro deles iria avançar no gaiteiro que estava de costas.

Aí aconteceu o inusitado. Pararam de golpe, estaquiados no seu primeiro rompante.

A música continuava. Murmurada. Todos cantavam de cabeça baixa, era uma prece:

E o campo todo recebe
Corpo e alma em funeral
Se tornará cinza e sal
Fundido com terra e água...

A segurança, os guardas, todos os seis, baixaram a cabeça e sacaram os quepes e bonés em respeito àquela hora.

E o choro da madrugada
Que entre seus pelos se entranha
Da brilho a teia da aranha
Que a macega deu pousada.

Amigos... quando soou a última nota, o silêncio foi tão grande que  pôde-se ouvir por um bom tempo o bordão batendo como uma campana contra os cantos da sala.

Estava findo o funeral.

Os músicos, os sete, se ergueram e tomaram o rumo da porta sem dizer palavra. Os guardas, ainda com os chapéus na mão, como a um cortejo, lhes deram passo. O que estava mais próximo da porta, num gesto de reverência, apressou-se em abri-la para o guitarrero. Ele foi o primeiro a sair.

Depois, um a um ganharam o pátio. Dali para a frente lhes esperava o caminho e cada qual foi ao seu encontro.


                                               Sérgio Carvalho Pereira.

                                                                                              Outubro de 2009.


                                                                      

2 comentários:

Gabriel Marquez Gonçalves disse...

aaaaaaaaaahhhhhh esse foi o funeral? ótima saída pra escapar da segurança! muito bom conto!!

Camilla disse...

Muito bom é muito pouco e a maior palavra é pequena se for pra, em tamanho, tentar ser à altura das letrinhas, em prosa ou verso, de Sérgio Pereira...